Livro: O Fole Roncou!



Desde que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira ensinaram ao Brasil como se dança o baião, nos anos 1940, nossa música nunca mais foi a mesma. Ao baião juntaram-se xaxado, coco, arrasta-pé, xote e outros ritmos nordestinos: assim nasceu o forró. Sete décadas depois, ele resiste como um dos mais autênticos gêneros musicais brasileiros, sobrevivendo aos modismos, às bruscas mudanças do mercado fonográfico e ao desaparecimento de alguns dos seus principais representantes. A partir de mais de oitenta entrevistas, além de ampla pesquisa em documentos inéditos, "O Fole Roncou!"

Uma história do forró reconstitui a trajetória desse estilo musical, cheia de episódios marcantes da vida de nomes como Gonzagão, Jackson do Pandeiro, Marinês, Dominguinhos, Trio Nordestino, Genival Lacerda, Anastácia, Antonio Barros, entre muitos outros.

Histórias de sanfona, suor e chamego, protagonizadas por expoentes da música brasileira popular, contadas no ritmo contagiante dos gigantes do forró.

Leia um trecho abaixo:
Introdução
Onde estão os mestres da cantoria?

Era maio de 1934, e Luís estava bem contrariado. Acabara de percorrer 1.307 quilômetros de estrada de terra no interior do Rio Grande do Norte - "837 de automóvel, 40 de auto de linha, 38 de trem, 30 de canoa, dois de rebocador e 360 de hidroavião" - para constatar que o sertão se esvaía. Notou que a região mais árida do estado atravessava processo de irrefreável mudança porque "a vida transformou-se: as rodovias levam facilmente as charangas dum pra outro povoado. Encontrei jornais do Rio e de São Paulo por toda parte: o sertão descaracteriza-se. É natural que o cantador vá morrendo também."

Integrante da comitiva do interventor federal Mário Câmara, Luís da Câmara Cascudo tinha 41 anos quando foi incumbido de registrar o que viu, ouviu e sentiu nas andanças pelo interior do seu estado. Acompanhado por técnicos em educação, agrônomos e especialistas em construção de açudes, o bacharel Cascudo andou

_a pé, de cadeirinha, de macaquinho, dentro d'água, na lama, nos massapés,_
pulando cercas, saltando de pau em pau os roçados que a enchente
circundara, correndo nos panascos, empurrando o auto, trabalhando de
pá, carregando maletas, levando os companheiros no ombro, livrando os
xique-xiques, galopando a cavalo, apostando velocidade nas retas areentas.

Diz ter superado a fome, o frio das roupas molhadas, o cansaço das caminhadas e "a mania obsequiosa do sertanejo oferecer-nos galinha e macarrão, em vez de carne de sol e coalhada". O resultado da viagem resultou em dezoito crônicas publicadas originalmente no jornal potiguar A República e posteriormente editadas pela Imprensa Oficial no livro Viajando o sertão.

Macau, Açu, Caraúbas, Paraú, Apodi, Santa Cruz, Pau dos Ferros, Cerro Corá Cidades, vilas e povoados receberam a visita da comitiva federal. Em boa parte dos lugares, Cascudo debateu o tema recorrente, o "cangaceirismo". Se ouviu e concordou com as palavras de admiração a respeito do cangaceiro Jesuíno Brilhante ("gentil-homem, admirado e senhorial como um Robin Hood"), não dispensou o mesmo tipo de tratamento ao mais famoso deles, Virgulino Ferreira: "É malvado, ladrão, estuprador, incendiário, espalhando uma onda de perversidade inútil e de malvadeza congênita onde passa." Mesmo assim, reconhece que Lampião reinava de forma incontestável na imaginação sertaneja, ainda mais depois de seu bando atacar Mossoró, em junho de 1927, e os moradores responderem a bala: "Deixaram que Lampião entrasse no âmbito da segunda cidade do estado e tiroteasse dentro das ruas iluminadas a luz elétrica e povoadas de residências modernas." Quando passou pela cidade, Cascudo recolheu relatos da luta encarniçada. Algumas testemunhas do combate mostraram ao visitante o local exato onde os cangaceiros foram avistados, cantando um tema popular:

Olê, mulher rendeira,
Olê, mulher rendá
Tu me ensina a fazer renda,
Eu te ensino a namorar.

Ao caracterizar os cangaceiros, o historiador lembra que as armas estão presentes com naturalidade no cotidiano do homem sertanejo por conta "da facilidade de ação pessoal, em vez de justiça". Acredita que tudo começou entre os séculos XVII e XVIII, quando o sertão foi povoado por "gente fisicamente forte e etnicamente superior", e os fazendeiros recorriam ao uso de armamentos, pela "necessidade da defesa imediata contra o índio implacável".

Em outra crônica, Câmara Cascudo discorre sobre as diferenças entre o pensamento do sertanejo e o do morador do agreste e do litoral: "O sertanejo é mais espontâneo que o agresteiro, viciado nas ironias da cidade por um contato maior. A população do interior guarda, em volume maior, as virtudes da palavra oportuna." O historiador vaticina: Uma literatura do sertão deverá refletir fielmente a sintaxe local e, acima de tudo, a mentalidade ambiente que não é inteiramente a nossa. Verdade é que a rodovia assimilou o sertão a tal ponto que o está tornando sem fisionomia. Mas ainda teremos uns anos antes que a terra perca seus atributos típicos.

As observações de Cascudo sobre o sertanejo atribuem a capacidade de manutenção de "sensibilidade própria, indumento típico, vocabulário teimoso" ao isolamento provocado pela distância do litoral. Ele destaca o gosto dos moradores da região pelas anedotas e "pela pilhéria oportuna e justa [com] que o matuto expressa sua inteligência". E também a verve de quem por lá vive, exemplificada na mistura de "imprevisto e comicidade" da resposta que guardou de um sertanejo, após este ouvir o motorista da comitiva dizer que tinha corpo fechado: "Pois seu doutor, nesta terra, de corpo fechado eu só conheço ovo"

Atento às peculiaridades do falar, Cascudo tenta encontrar na influência do tupi uma explicação para o fato de o sertanejo não flexionar o plural: "Sabemos o número apenas pelo determinativo: o boi, os boi; a vaca, as vaca. E no nheengatu não havia o plural." Observa que, "como todo primitivo", o matuto não ama a natureza em estado intocado: "Árvore por si só nada quer dizer. Só deparamos um sertanejo extasiado ante a natureza quando esta significa para ele a roçaria virente, a vazante florida, o milharal pendoando, o algodoal cheio de capulhos. A noção da beleza para ele é a utilidade, o rendimento imediato, pronto e apto a transformar-se em função." E conclui: "Por isso, não há um só canto popular descrevendo paisagens."

*
"O Fole Roncou!: Uma História do Forró"
Autor: Carlos Marcelo e Rosualdo Rodrigues
Editora: Zahar
Páginas: 472
Quanto: R$ 49,90

Texto da Livraria Folha, baseado em informações fornecidas pela editora/distribuidora da obra.

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