A engenhosidade poética de João Cabral de Melo Neto


Catar Feijão 
Catar feijão se limita com escrever: 
Jogam-se os grãos na água do alguidar 
E as palavras na da folha de papel; 
e depois, joga-se fora o que boiar. 
Certo, toda palavra boiará no papel, 
água congelada, por chumbo seu verbo; 
pois catar esse feijão, soprar nele, 
e jogar fora o leve e oco, palha e eco. 


Ora, nesse catar feijão entra um, risco 
o de que entre os grão pesados entre 
um grão imastigável, de quebrar dente. 
Certo não, quando ao catar palavras: 
a pedra dá à frase seu grão mais vivo: 
obstrui a leitura fluviante, flutual, 
açula a atenção, isca-a com risco. 

João Cabral de Melo Neto, autor do poema acima, completaria hoje 92 anos. Ele é o mais importante poeta da geração de 45, nasceu em Recife e passou a infância em engenhos de açúcar em São Lourenço da Mata e Moreno. Desde cedo demonstrava interesse pela palavra, pela literatura de cordel nordestina e desejava ser crítico literário.

Em 1946 ingressou na carreira diplomática e, a partir de então, serviu em várias cidades do mundo: Barcelona, Londres, Sevilha, Madri, Porto, Rio de Janeiro, aposentando-se em 1990.

Irmão do historiador Evaldo Cabral de Melo e primo do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre, João Cabral foi amigo do pintor Joan Miró e do poeta Joan Brossa. Membro da Academia Pernambucana de Letras e da Academia Brasileira de Letras, foi agraciado com vários prêmios literários.

Quando morreu, em 1999, especulava-se que era um forte candidato ao Prêmio Nobel de Literatura.

Foi casado com Stella Maria Barbosa de Oliveira, com quem teve os filhos Rodrigo, Inez, Luiz, Isabel e João. Casou-se em segundas núpcias, em 1986, com a poeta Marly de Oliveira.


Sua obra apresenta duas linhas-mestras: a metapoética e a participante. A linha metapoética abrange os poemas de investigação do próprio fazer poético. E a participante é aquela que tem como tema o Nordeste, com todos os problemas voltados para a questão social, tais como a miséria, a indigência, a fome, entre outros.

Uma das celebridades que retrata bem esta temática foi a obra Morte e Vida Severina, a qual revela a história de um retirante de 20 anos que sai em buscas de melhores condições de vida.

Dando prioridade à análise da poesia mencionada, percebemos que o artista parece não dialogar com um leitor comum, mas com os outros poetas. Podemos chamar isto de “Métrica do Intelecto”, no qual o “fazer poético” tem o seu sublime destaque.

Podemos perceber que ele utiliza um simples ato do cotidiano, que é o de catar feijão, e compara-o com a prática da escrita, ou seja, assim como os grãos devem ser minuciosamente escolhidos, as palavras devem ser muito bem articuladas para que haja clareza, no que se refere ao exercício da linguagem.

A afirmativa torna-se verídica ao analisarmos os seguintes versos:
“Joga-se os grãos na água do alguidar
E as palavras na folha de papel
E depois, joga-se fora o que boiar.”

Por Vânia Duarte (Brasil Escola)


Obras do poeta:

Pedra do Sono (1942)
Os Três Mal-Amados (1943)
O Engenheiro (1945)
Psicologia da Composição com a Fábula de Anfion e Antiode (1947)
O Cão sem Plumas (1950)
O Rio ou Relação da Viagem que Faz o Capibaribe de Sua Nascente à Cidade do Recife (1954)
Dois Parlamentos (1960)
Quaderna (1960)
A Educação pela Pedra (1966)
Morte e Vida Severina (1966)
Museu de Tudo (1975)
A Escola das Facas (1980)
Auto do Frade (1984)
Agrestes (1985)
Crime na Calle Relator (1987)
Primeiros Poemas (1990)
Sevilha Andando (1990)
Tecendo a Manha (1999)


O meu nome é Severino,   
como não tenho outro de pia.  
Como há muitos Severinos,  
que é santo de romaria,   
deram então de me chamar  
Severino de Maria  
como há muitos Severinos  
com mães chamadas Maria,  
fiquei sendo o da Maria  
do finado Zacarias.
Trecho inicial de Morte e Vida Severina - leia a obra completa aqui.  



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